sábado, 3 de fevereiro de 2018

São Cristóvão pela Europa (56)

 
 
Abadia de Bijloke, Gand, Bélgica, 30 de Julho de 2017
 
 
A primeira parte do romance Le roi des aulnes, de Michel Tournier, é preenchida com o diário íntimo da infância de Abel Tiffauges, sempre sob o signo do Colégio Saint-Christophe que ele frequentou e da amizade com o seu companheiro Nestor.
 
Refere, a certo momento, os critérios que levam à escolha dos meninos de coro no Colégio. E, para o fazer, volta ao tema de São Cristóvão.
 
O Menino Jesus nos ombros de Cristóvão é ao mesmo tempo levado e trazido. Está aí toda a sua influência. É levado pela força, e muito humildemente e penosamente suportado sobre as águas ameaçadoras. E toda a glória de Cristóvão é a de ser ao mesmo tempo animal de carga e custódia. Na travessia do rio, há rapto e trabalho forçado. É verdade que ponho nestas frases mais força e mais clareza do que elas realmente contêm, obedecendo assim à minha vocação fundamental. Mas creio lembrar-me que Nestor teria querido encontrar esta ambiguidade no menino de coro, e ver um prelado ajoelhar-se perante um seu pequeno turiferário (aquele que sustenta o turífero com o incenso, ou seja o menino de coro).
 
Um dia, o Superior do Colégio profere um sermão na Missa. Inicia-o referindo-se aos Ensaios de Montaigne na parte em que ele conta o que se pode considerar uma pequena anedota respeitando o conquistador português do Século XVI (ele diz XV…) Afonso de Albuquerque. Albuquerque num perigo extremo no mar pôs sobre os ombros um rapazinho, com a única finalidade de a sua inocência lhe servir de garante e recomendação para o favor divino de o pôr em segurança. Dito isto, o pregador prosseguiu sem dificuldade o seu raciocínio passando ao santo patrono do Colégio, à sua aventura maravilhosa de portador de Cristo, á sua recompensa, esse bordão folhoso e frutado. Nada permite supor, acrescentou, que Albuquerque se tenha recordado da história de São Cristóvão e que tenha querido imitá-lo num perigo extremo, mesmo Cristóvão sendo o protector dos viajantes e navegadores, como todos sabem. Não, o que é mais provável e mais exaltante, é que tanto o conquistador como o santo, tenham recorrido à mesma fonte, ou seja, independentemente um do outro praticaram o mesmo gesto: puseram-se sob a protecção do Menino que eles protegiam, salvaram-se salvando, assumiram um peso, carregaram os ombros, mas um peso de luz, uma carga de inocência. E concluiu: porque estais aqui todos sob o signo de Cristóvão, é preciso que daqui em diante e durante toda a vossa vida, vós saibais atravessar o mal, abrigando-vos num manto de inocência. Chamai-vos vós Pierre, Paul ou Jacques, lembrai-vos que vós vos chamais também Pierre Portamenino, Paul Portamenino, Jacques Portamenino. E então carregados dessa carga sagrada, vós atravessareis os rios e as tempestades, assim como as chamas do pecado.
 
José Liberato
 


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